Ricardo Pontual: “A política habitacional da metrópole tem que estar no centro das estratégias de organização do território”

Ricardo Pontual, especialista do eixo de Habitação e Equipamentos Sociais
O especialista do eixo de Habitação e Equipamentos Sociais do Consórcio Quanta-Lerner, Ricardo Pontual, faz um balanço da política habitacional da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e fala sobre as propostas para contenção do espraiamento e de como modificar as modalidades de atendimento habitacional, como um maior apoio do poder público à autoconstrução.
Pontual já realizou estudos sobre o setor para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial, Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Sistema de Apoio à Gestão (SAGE) da COPPE/UFRJ no Brasil, e para outras entidades da América Latina.
Qual o grande objetivo do eixo temático de Habitação e Equipamentos sociais?
No PDUI/RMRJ, queremos usar a política habitacional como um instrumento para a redução das fortes desigualdades sociais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Uma habitação digna, além da ideia de abrigo, deve compreender a integração com a cidade em seu entorno, a disponibilidade de infraestrutura urbana, de acesso ao mercado de trabalho e aos equipamentos sociais. A habitação assim concebida propicia as condições necessárias para a proteção física dos seus moradores, o convívio familiar, a integração do indivíduo com a comunidade e a reprodução da força de trabalho.
Atender as necessidades habitacionais, portanto, não se resume apenas à questão das moradias?
A moradia, em sua dimensão apenas física, não atende a todos os requisitos necessários para que os indivíduos possam ter garantia de acesso pleno aos seus direitos de cidadania. O foco apenas nessa dimensão é uma concepção muito restrita e que, infelizmente, tem predominado na maior parte das políticas habitacionais estabelecidas no país há muitas décadas. Os construtores e empreendedores imobiliários, em geral bem organizados e politicamente influentes, veem apenas a edificação como o principal mecanismo de implantação dos programas. Como resultado, os conjuntos habitacionais são construídos nas periferias urbanas, onde surgem as casas e os apartamentos sem cidades no entorno. Grande parte dos conjuntos do Minha Casa Minha Vida, programa do Governo Federal, dispõem de uma precária infraestrutura. São deficientes quanto à oferta de equipamentos sociais, de saúde, educação e segurança e, principalmente, de condições adequadas de acessibilidade.
A saída seria evitar essas construções em periferias que acabam contribuindo cada vez mais para o espraiamento das cidades?
Não se trata de desprezar o papel dos construtores, mas de restringir a liberdade com que atuam na definição de áreas onde serão implantados os projetos habitacionais. É preciso fortalecer a ação do Estado, com mais mecanismos de planejamento e controle do solo urbano e de maior participação das representações sociais desde a fase de concepção dos programas. O governo do Estado poderá desempenhar um importante papel capacitando e orientando os municípios, sobretudo, no aproveitamento dos instrumentos do Estatuto da Cidade, para viabiliza recursos e parcerias com o setor privado. O que pode tornar possíveis novas e mais eficientes modalidades de atuação no setor habitacional. Estamos buscando, com o Plano Metropolitano do Rio de Janeiro, uma visão espacialmente abrangente, integrada e de longo prazo, capaz de orientar melhor essas decisões.
Qual foi a consequência dessa expansão sem controle e planejamento?
Uma enorme proporção de famílias residentes em subúrbios e periferias dos municípios da Região Metropolitana que, de alguma forma, tiveram acesso a uma unidade habitacional – seja em favelas, loteamentos irregulares ou ilegais, ou mesmo em áreas legalizadas, mas desprovidas de atendimento, de infraestrutura e de acesso adequados aos locais de trabalho e aos equipamentos sociais. Todos esses casos devem ser considerados como objeto de atenção da política habitacional. São bairros inteiros com péssimas condições urbanísticas, ou que foram implantados, no passado, em uma periferia longínqua das cidades, e que hoje, apesar de terem se tornado novas centralidades, permanecerem invisíveis e fora do alcance das políticas públicas.
O Sr. poderia dar um exemplo?
Muitos desses bairros têm densidades de ocupação baixa e com muitos lotes ainda vazios. Segundo cálculos preliminares que fizemos para o Plano Metropolitano do Rio de Janeiro, por exemplo, após investimentos a serem feitos, o número de moradias localizadas no entorno de 1km da estação de trem do Jardim Primavera, em Caxias, poderá passar das atuais 5,8 mil unidades para 23,5 mil unidades, ou seja, quase quatro vezes mais casas no mesmo espaço.
Há propostas do PDUI/RMRJ voltadas para o controle desse crescimento?
Sim, teremos que propor, simultaneamente, alternativas para acomodar o crescimento da demanda habitacional e elevar as condições de habitabilidade desses bairros. Considerando apenas a faixa de domicílios com renda familiar de até 2 salários mínimos, o aumento é de 27 mil unidades de habitação por ano. Sem considerar o passivo existente, os investimentos em infraestrutura e equipamentos necessários para atender a essas novas moradias são imensos e serão ainda maiores se o crescimento ocorrer a baixas densidades de ocupação do solo.
É necessário estabelecer algum tipo de governança específica no eixo habitação?
Sim, mas de uma forma bem diferente daquela com que o setor vem sendo tratado há muitas décadas. De acordo com o inciso IX, do Art.23 da Constituição Federal, é uma competência comum da União, estados, Distrito Federal e municípios a promoção de programas de construção habitacional e melhorias das condições habitacionais e de saneamento básico da população. Apesar disso, não ficou claro no Estatuto das Metrópoles que a habitação constitui uma função pública de interesse comum. É indiscutível, então, a necessidade de considerar esse assunto como um tema metropolitano e para o qual devam ser estabelecidas políticas específicas. É bom lembrar que os usos habitacionais representam a maior proporção dos vários tipos das ocupações urbanas, no mínimo, 60%.
As propostas que estamos desenvolvendo no PDUI/RMRJ pressupõem que a gestão da política habitacional da metrópole tenha que estar no centro das estratégias de organização e racionalização espacial do território. Não faz sentido continuar com o modelo implantado na época do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), há 53 anos, quando tanto a formulação, como a implementação da política habitacional e de seus programas eram de responsabilidade das Companhias de Habitação (COHABs) e órgãos semelhantes, que atuavam de forma excessivamente setorial e dissociada dos setores responsáveis pelo planejamento e controle urbanístico.
O Diagnóstico do PDUI/RMRJ mostra um grande déficit habitacional e uma alta inadequação de moradias. Haverá produção de unidades habitacionais suficientes para atender à demanda da população futura?
Acho muito pouco provável que no curto e médio prazo, essa situação possa se alterar positivamente, tendo em vista a grave crise econômica em que o pais está mergulhado. Taxas de desemprego e achatamento salarial recordes, além de outros problemas provocados pela crise, repercutem direta e imediatamente no funcionamento do setor habitacional. Isso sem falar que a política habitacional deveria, idealmente, tentar atender pelo menos parte do crescimento anual da demanda de novas moradias, decorrentes do aumento populacional e da taxa de formação de famílias, cuja projeção variou, nos estudos disponíveis, de 60 mil unidades/ano (CEDEPLAR, 2009); 72 mil unidades/ano (Plano Arco, 2011); a 91 mil unidades/ano (PEHIS, 2012).
O Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, no período de 2009 a 2016, produziu na Região Metropolitana do Rio, para a faixa 1 do programa (que corresponde a famílias com renda de até 2 salários mínimos),cerca de 80,4 mil unidades – uma média de 11,5 mil/ano, um recorde se comparado a qualquer outra fase de políticas habitacionais destinadas a população carente. Isso representou, em termos relativos, apenas 45% do crescimento do estoque de domicílios direcionados a essa faixa social que, segundo a projeção desenvolvida para o Plano do Arco Metropolitano, era de 25, 8 mil unidades/ano.
Qual seria a sua recomendação?
Para mim, esse é um momento propício para modificar as modalidades de atendimento habitacional. Por exemplo, além da oferta de unidades habitacionais prontas, deveriam ser favorecidos os processos de autoconstrução progressiva das unidades, ou seja, quando famílias pobres constroem suas moradias aos poucos, ao longo do tempo, na medida em que conseguem recursos extras para a compra de materiais e tempo livre para retomarem a obra. Essa é a forma pela qual a grande maioria da população termina resolvendo suas necessidades de moradia e que pode, inclusive, minimizar o espraiamento.
Na realidade, o processo de verticalização de moradias em bairros populares com melhor localização já vem ocorrendo de forma espontânea por iniciativa de seus moradores. Mas ainda é feito sem infraestrutura adequada, sem nenhum planejamento ou qualquer outra forma de apoio ou orientação dos poderes públicos, que poderiam constituir uma alternativa de política habitacional adequada. Outra medida seria concentrar investimentos na melhoria da infraestrutura urbana e equipamentos sociais dos bairros já ocupados, mas que permanecem carentes. Esses investimentos poderiam ser associados a medidas de reorganização planejada desses bairros, com estímulos para o aumento das ocupações dos lotes.
Além de tudo, é preciso se controlar, de fato, a questão dos custos da terra infraestuturada. O Estatuto da Cidade oferece ao estado todas as possibilidades para a isso. Inclusive o de o poder público poder tirar proveito de eventuais valorizações do solo, originadas em seus investimentos, em benefício das intervenções que não tenham condições de enfrentar aqueles custos.